quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Porque ensinar e aprender vale a pena

A casa dos Outros

"A D. Maria tem 47 anos... e um cancro do ovário. O marido, já reformado,

quis satisfazer-lhe o desejo de não morrer no hospital.

Têm uma filha, a acabar o curso na universidade: boa aluna, em altura de
exames... precisa de estudar e a sua mãe está a terminar os seus dias de
vida no quarto ao lado.

A D. Maria está em cuidados paliativos... e sabe disso!

Já não quer comer, bebe apenas alguns goles de água. Tem um soro para que

lhe possamos dar a medicação. Tem uma perfusão permanente de morfina,
cuja
eficácia não é total. A barriga... como descrever? Tem uma colostomia,
que mal funciona... está inchada, como um balão que vai rebentar.. e de
facto, começa a rebentar: abrem-se fístulas espontaneamente e as fezes saem por todo o lado.

O cheiro? Não consigo descrever! O corpo? Pele e osso, para ser mais exacta!

Há metástases no fígado, no pulmão... a respiração é ofegante... já lá
vão 5 semanas...

Diariamente desloco-me a casa da D. Maria, duas ou três vezes: para dar
medicação, para cuidar daquela barriga... para falar com ela, para dar o
apoio possível ao marido que tenta fazer o que sabe e o que pode.

O sofrimento? É grande... de todos!

Mas eu sou enfermeira: não é suposto que me seja difícil ver o sofrimento

dos outros!

Tudo se torna mais difícil quando estou a sós com a D. Maria, que me
agarra
na mão e me pede insistentemente... que termine com a vida dela!

Os apelos são cada vez mais frequentes, mais desesperados: "Por favor! Se

tem compaixão de mim, injecte-me qualquer coisa para terminar de vez com
esta agonia! Pela sua felicidade, por favor, acabe com a minha vida..."

E eu tenho compaixão... mas nada posso fazer! A dor não se consegue
controlar, é impossível cuidar dela sem lhe provocar ainda mais dores?

O que faz uma enfermeira?

Vai-se embora, para casa, a sentir-se inútil... A sentir-se incapaz... A
ouvir repetidamente aquele apelo... e a desejar, embora lhe custe muito,
que a eutanásia fosse possível! Mas, se fosse possível... e a praticasse, como
iria para casa?

Mas para quê falar disto?... Os enfermeiros não têm sentimentos!

Saio dali, continuo o meu trabalho domiciliário: agora entro numa
barraca, onde chove dentro, onde há ratos, pulgas, lixo... onde o cheiro nos faz
perder o apetite... O Sr. José tem 87 anos e vive sozinho. Tem uma úlcera
varicosa. Tenho que fazer o penso. Não há água... nem sequer as mãos
posso lavar. Passo-as por álcool à saída e lavo-as na casa do próximo utente.

Chove desalmadamente. Volto para o carro, pelo meio da lama. Carrego as
malas do material para os cuidados.

Mas para quê falar disto?... A minha profissão não é penosa!...

Próxima paragem: D. Joaquina, 92 anos, vive numas águas furtadas, 5º
andar, sem elevador. Subo as escadas de madeira, apodrecidas, obscuras, com medo

que alguma tábua se parta. Carrego com as malas do material...

A D. Joaquina vive com uma irmã, naquele espaço exíguo. Teve uma
trombose.
Tem úlceras de pressão. O tecto é baixo, inclinado, a cama está encostada
à parede. Para lhe prestar cuidados tenho que me pôr de joelhos no chão e
ficar inclinada.

Quando me tento endireitar as minhas costas doem... tenho as pernas
dormentes... pego nas malas, desço as escadas... continua a chover...
procuro o carro que tive que estacionar a 500 metros!

Mas, para quê falar disso? Os enfermeiros não se queixam...

Próximo desafio: a Helena! Toxicodependente... tem SIDA, continua a
consumir... com sorte, ainda lá encontro o traficante em casa... mas as
enfermeiras não têm medo!

Continuo: o Sr. Manuel é diabético, divorciado, tem 50 anos, foi amputado
de uma perna, vive sozinho num 3º andar. Há 2 anos que não sai de casa: como
fazer? Das poucas pessoas, com quem convive, são as enfermeiras! Precisa
de conversar... como lhe dizer que ainda tenho mais 4, ou 8 pessoas e que
não tenho tempo para estar ali a ouvi-lo?

Mas para quê falar disso? Os enfermeiros só dão injecções e fazem
pensos... tudo o resto é supérfluo!

Para quê falar da solidão do outro, da minha impotência, do pedido de
eutanásia, da chuva, do frio, do sol, do calor, do mau cheiro, das minhas

dores nas pernas, do material do penso a conspurcar o meu carro (a seguir

vou buscar a minha filha à escola!), das dores nas costas, do medo, da
insegurança, do ventre desfeito, da tristeza, da compaixão...
....

Não, a penosidade e o risco devem ser uma ilusão minha...

Não, as enfermeiras não choram!

Mas sabem?... as lágrimas que mais doem são aquelas que não correm!"

Grata AS


1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei de ver o texto, mas tem autor (que sou eu) e está publicado em livro desde Junho de2000(era bom mencionar), já que o mesmo tem outros exemplos que podem ser úteis para a reflexão.